Três dias de insultos no parlamento
Senão vejam! Todos os dias aqueles ilustres deputados se dizem uns aos outros: É falso! É mentira! E não se esbofeteiam, não se enviam duas balas! Piedosa inocência!
Cordura evangélica! É um parlamento educado por S. Francisco de Sales!
O ilustre deputado mente!
Ah, minto? Pois bem, apelo...
Cuidam que apela para o espalmado da sua mão direita ou para a elasticidade da sua bengala?
- Não, meus caros senhores, apela - para o País!
Quanta elevação cristã num diploma de deputado! Quando um homem leva em pleno peito, diante de duzentas pessoas que ouvem e de mil que lêem, este rude encontrão: É falso! - e diz com uma terna brandura: Pois bem, apelo para o País! - este homem é um santo! Não entrará decerto nunca no Jockey-Club, de onde a mansidão é excluída, mas entrará no reino do Céu, onde a humildade é glorificada.
É uma escola de humildade este parlamento! Nunca em parte nenhuma, como ali, o insulto foi recebido com tão curvada paciência, o desmentido acolhido com tão sentida resignação! Sublime curso de caridade cristã. E veremos os tempos em que um senhor deputado, esbofeteado em pleno e claro Chiado, dirá modestamente ao agressor, mostrando o seu diploma: - «Sou deputado da nação portuguesa! Apelo para o País! Pode continuar a bater!»
E depois que doçura de expressões! Não vimos ainda há pouco o Sr. Ávila designado no meio de uma questão financeira com estas benévolas qualificações - camaleão, sapo, elefante?! Que autoridade no dizer! que elevação no pensar! Como é instrutivo, como é moral, o ver discursos assim concebidos:
- Não aprovo o projecto do ilustre presidente do Conselho, porque entendo na minha consciência, e digo-o à face do País, que S. Exª é uma verdadeira serpente:
- Mando para a mesa a seguinte moção:
A Câmara, compenetrada de que o sr. ministro da Fazenda é uma lontra, passa à ordem do dia!
Depois o modo carinhoso como a Câmara tomou conta da infeliz palavra insulto!
Aquela pobre palavra, tão comprometedora, que nunca aparecia outrora que não fosse o sinal de um duelo ou de uma policia correccional - o parlamento refez-lhe uma virgindade e um decoro, e ela agora vem, e ninguém se revolta, e o Sr. António Aires tem para ela um bom sorriso.
- O ilustre deputado há três dias não faz senão insultar-me (textual). Três dias!
- O ilustre deputado não me insulte!
- Vou responder a esses insultos!
- Menos insultos!
Ai! o mundo despoetiza-se! As coisas terríveis perdem o colorido da lenda.
O Parlamento vive na idade de ouro. Vive nas idades inocentes em que se colocam as lendas do Paraíso - quando o mal ainda não existia, quando Caím era um bom rapaz, quando os tigres passeavam docemente par a par com os cordeiros, quando ninguém tinha tido o cavalheirismo de inventar a palavra calúnia! - e a palavra mente! não atraía a bofetada! crianças riem do papão. O diabo já não é temido. O insulto já não é aviltante! Não é! A Câmara dos Deputados vive há um mês, tendo no seu seio o insulto, em perpétua ordem do dia - e engorda!
Mas o Sr. António Aires, esse, para que continua a dizer com a sua voz eloquente:
- Amanhã continua a mesma discussão?
A escrupulosa verdade - e S. Exª, sacerdote e católico, está adstrito a observar este regimento da consciência - pede que se declare:
- Amanhã continua a mesma assuada.
Assim o público ficava avisado - e os srs. deputados também! Porque nada deve custar mais a um ilustre deputado, que quer zelar os interesses do seu país, do que ver, numa discussão, exausta a sua colecção de injúrias, findos os seus apontamentos de berros!
Não é quem quer doutor em impropérios! E assim, devidamente prevenido, cada deputado podia formar de véspera uma útil e séria lista de argumentos - consultando o dicionário, o seu aguadeiro, a porta da Alfândega e os fadistas da Praça da Figueira.
Eça de Queiroz - in Uma Campanha Alegre
Passam hoje 164 anos sobre o nascimento de Eça de Queiroz e o texto transcrito tem mais de 138 anos. Mas, se fosse vivo, talvez escrevesse algo de muito similar, provavelmente com adjectivos bem mais contundentes considerando a panóplia de meios de comunicação que hoje existe.
O tempo passa
ResponderEliminarJosé Estêvão tambem marcou pontos
Faltam as bengalas.
Comem todos na mesma gamela,
ResponderEliminarmeu caro!
Um abraço