Páginas

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Desmistificar fantasias - V O princípio da dignidade humanaHá dois argumentos para defender a ideia de que os embriões devem ser tratados com respeito e estes argumentos podem dar origem a objecções à investigação em células estaminais em embriões humanos. O primeiro deriva da aprovação e aplicação do princípio da dignidade humana e o segundo baseia-se no valor simbólico do embrião. De acordo com o princípio da dignidade humana, numa formulação que se pode encontrar em Kant (1785), a vida humana nunca deve ser pensada apenas como um meio, mas sempre também como um fim. Inspirados pela formulação de Kant, há quem defenda que os embriões humanos não podem ser tratados apenas como um meio para promover investigação. Nesta perspectiva, utilizar embriões para investigação em células estaminais é uma violação do princípio da dignidade humana, visto que é uma forma de instrumentalização da vida humana (Kahn, 1997). É importante observar como passo preliminar que a ideia de Kant, a que actualmente se chama muitas vezes "instrumentalização", pode ser utilizada para condenar práticas como a escravatura, pela qual tratamos outros seres humanos apenas como meios, mas não é útil noutros contextos em que tratamos os outros quer como um meio quer como um fim ao mesmo tempo (por exemplo, relações de família, amizade, etc). Esta limitação do princípio na sua formulação Kantiana tem sido apontada por Harris e Sulston (2004) que sugerem uma interpretação utilitarista da dignidade humana. Estes autores corroboram a ideia de Bentham de que cada ser humano deve ter uma posição igual com respeito aos direitos e interesses (Bentham, 1789). Esta interpretação elimina o conceito de instrumentalização como uma violação da dignidade humana, mas realça dois outros aspectos da dignidade humana: i) cada vida tem igual importância e ii) cada vida interessa. Ambas as interpretações do princípio da dignidade humana que foram aqui consideradas podiam ser usadas contra a utilização de embriões humanos na investigação em células estaminais. Apoiando-se na leitura kantiana do princípio, alguém podia argumentar que nenhuma vida humana pode ser usada apenas como meio. Se os embriões humanos contam como uma forma de vida humana, e certamente contam, então não é permissível utilizá-los apenas como um meio de colher células estaminais. Recorrendo à formulação utilitarista do princípio, alguém podia afirmar que a vida dos embriões humanos interessa tanto como a vida de qualquer outro ser humano, e os embriões têm os mesmos interesses e direitos que os outros seres humanos têm. Note-se que em ambos os casos a objecção se apoia no pressuposto de a dignidade ser um atributo da vida humana enquanto tal. Mas como sustentámos até agora, nada há de intrinsecamente valioso em pertencer à espécie Homo sapiens. Outorgar direitos e interesses unicamente com base na qualidade de membro da espécie parece ser totalmente arbitrário e é comparável, como prática, a conferir direitos e interesses com base na raça e no sexo. Equivale a uma forma de preconceito com base no qual se pode exercer discriminação. A razão pela qual julgamos a vida humana valiosa e queremos protegê-la é que o ser humano típico tem as capacidades que têm sido descritas como moralmente relevantes e que são requisitos para a senciência e a pessoa. Por conseguinte, as objecções à investigação em células estaminais em embriões por causa do princípio da dignidade iludem a questão de qual é o alcance do princípio. Como o princípio é expresso como um princípio da dignidade humana, podia trabalhar-se sob a hipótese de que é a humanidade que determina se alguma coisa ou alguém tem certos direitos e interesses. Mas a humanidade é valiosa somente até ao ponto em que defende as capacidades que são plausivelmente valiosas. Quando se trata do valor da vida ou da dignidade da vida devemos assegurar-nos de que nenhuma pessoa é usada apenas como um meio (formulação kantiana) ou de que todas as pessoas contam como iguais com respeito aos seus direitos e interesses (formulação de Bentham) .” Lisa Bortolotti e John Harris

Sem comentários:

Enviar um comentário