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sábado, janeiro 27, 2007

Religião e dever público Na governação dos Estados democráticos, a coisa pública não pode andar ao sabor das crenças religiosas, pois os Estados têm o dever de tratar igualmente todos os seus cidadãos. Assim, se um governante é confrontado com a necessidade de tomar decisões que vão contra os ditames da sua religião e não é capaz de ultrapassar essa situação, só tem um caminho a seguir: retirar-se, humildemente, da gestão da coisa pública. Não foi isso que sucedeu com António Guterres quando, em 1998, o Parlamento tinha condições para legislar sobre a IVG. A sua crença religiosa sobrepôs-se ao seu dever de líder do governo e do partido então maioritário. Como consequência, tivemos um referendo marcado para uma época alta de férias (28 de Junho), com muita gente a ir para a praia e muitos outros impedidos de votar (como foi o meu caso e o de tantos milhares de portugueses com férias negociadas e já pagas em locais muito distantes da sua assembleia de voto quando a data do referendo foi marcada), mais oito anos num país que não faz cumprir as suas leis e um novo referendo onde parece valer tudo, até “tirar olhos”. Também tal não aconteceu quando o presidente dos Estados Unidos, empossado há alguns meses, decidiu, em Agosto de 2001, que a investigação em células estaminais embrionárias não devia ser financiada por fundos federais dado que, em seu entender, tal investigação atentava contra a “santidade” da vida humana. Embora por linhas tortas, foi isso que aconteceu quando o Parlamento Europeu se opôs à tomada de posse, como comissário de Durão Barroso encarregado de velar pelos direitos de todos os cidadãos europeus, do Sr. Rocco Butiglioni, que declarara que, para si, a homossexualidade era um pecado. Recordo-me de que, na altura, Mário Pinto se insurgiu, nas páginas do Público, contra esse impedimento, uma vez que o italiano saberia destrinçar entre a sua fé e as suas obrigações como comissário europeu. O mesmo Mário Pinto que, poucos meses depois, assinou um alerta aos eleitores católicos para que não votassem em forças políticas que defendessem a IVG. Mistérios da incoerência militante. Veremos agora o que acontece em Inglaterra, onde Ruth Kelly, membro do Opus Dei e ministra de Toni Blair, tem de preparar legislação que proíba a discriminação contra os casais homossexuais e onde o próprio primeiro ministro parece ter sérios problemas com tal legislação. Laicidade, precisa-se.

3 comentários:

  1. Concordo plenamente. A fé é um assunto do foro privado e individual que não pode interferir com as funções laicas de um estado laico.

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  2. Resta saber que modelo de laicidade queremos seguir...

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  3. Por mim, não quero seguir modelo nenhum importado, pois a laicidade é só uma e tem um significado muito preciso, que assenta nos seguintes pressupostos, que o Estado deve garantir:

    A liberdade de religião e de consciência, uma vez que cada indivíduo e grupo, se o Estado nada diz sobre a matéria, tem a liberdade de escolher a sua religião, de a praticar, de dela sair e para ela voltar a entrar, dentro dos critérios de cada religião em causa;

    O princípio de igualdade no tratamento das religiões, pois se não há religião oficial, não há tratamento de desfavor, mas apenas o reconhecimento de uma realidade social e humana com a qual o Estado pode colaborar para certos efeitos;

    O princípio democrático, na medida em que a separação entre o Estado e as confissões religiosas não faz do poder político presa de nenhuma religião, sendo legítimo a todos os grupos politico-partidários, independentemente da sua conexão religiosa, ganharem e exercerem o poder político.

    O que afirmo na posta é que, quem ganhar legitimamente o poder político, deve exercê-lo abstraindo-se das duas convicções religiosas. Se tal não conseguir, deve abdicar do poder político.

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