Páginas

domingo, janeiro 14, 2007

Podemos viver sem convenções ?

Há quem diga que é pouco convencional. Há mesmo quem se vanglorie de viver contra todas as convenções. Mas será isso possível? O filósofo Ludwig Wittgenstein ensinava que nossa comunicação não passa de um grande jogo de palavras. Não há relação direta entre palavras e coisas. Palavras são inventadas arbitrariamente. Seu sentido é fruto de uma convenção e tudo depende do uso que fazemos delas. Estabelecem-se, pois, convenções, a partir de algo arbitrário. Há anos numa aula de filosofia em Munique escutei a seguinte história que faz pensar. Havia um professor que após a aposentadoria se entediava muito porque tudo lhe parecia chato e sem graça A mesa era sempre mesa, as cadeiras, cadeiras, a cama, cama, o quadro, quadro. Por que não poderia ser diferente? Os brasileiros chamam a casa de casa, os franceses de maison, os alemães de Haus e os ingleses de home. E resolveu dar outros nomes às coisas já que tudo nessa área é mesmo arbitrário. Assim chamou à cama de quadro, a mesa de tapete, a cadeira de despertador, o jornal de cama, o espelho de cadeira, o despertador de álbum de fotografias, o armário de jornal, o tapete de armário, o quadro de mesa e o álbum de fotografias de espelho. Portanto: o homem ficava bastante tempo no quadro, às nove tocava o álbum de fotografias, se levantava e punha-se em cima do armário para não apanhar frio nos pés, depois tirava a roupa do jornal, vestia-se, olhava para a cadeira na parede, sentava-se no despertador junto ao tapete e folheava no espelho até encontrar a mesa da filha. O homem achava tudo aquilo muito engraçado. As coisas começaram de fato a mudar. Treinava o dia inteiro para guardar as significações novas que dava às palavras. Tudo se chamava de outra maneira. Ele já não era um homem mas um pé, e o pé era uma manhã e a manhã um homem. E continuou a dar significações diferentes às palavras: tocar a campainha diz-se pôr, ter frio diz-se olhar, estar deitado diz-se tocar, estar de pé diz-se ter frio e pôr diz-se folhear. E a coisa ficou então assim: Pelo homem, o pé ficou bastante tempo tocando no quadro, às nove pôs o álbum de fotografias, o pé teve frio e folheou-se no armário para não olhar para a manhã. E o aposentado se divertia com as novas designações que atribuía às palavras. Fez tanto que acabou realmente esquecendo a linguagem comum com a qual as pessoas se comunicam entre si. Quando conversava com os outros tinha que fazer muito esforço porque somente lhe vinham à mente os sentidos que havia dado às palavras. Ao quadro dele, as pessoas chamavam de cama, ao tapete de mesa, ao despertador de cadeira, à cama de jornal, a mesa de quadro e ao espelho de álbum de fotografias. Ria muito quando ouvia as pessoas falarem:"hoje vou assistir o jogo de abertura da copa mundial de futebol" ou "como faz frio hoje". Ria porque não entendia mais nada. Mas o triste da história é que ninguém mais o entendia e ele também não entendia mais ninguém.

Leonardo Boff

Texto publicado no site do autor em 9 de Junho de 2006 e aqui afixado com sua autorização

3 comentários:

  1. Interessante!

    ResponderEliminar
  2. Mais que interessante, acho triste... A vida é cheia de tumultos, aventuras, o acordar cedo, o trabalhar... e vem o fim-de-semana, e descança-se e as esperadas férias... e depois um dia, tudo acaba! Tudo é somente umas férias prolongadas, infinitas... E tudo se torna maçador, aborrecido, entediante... E a tudo isto acompanha a solidão que nesta fase da vida muitas vezes se abarca dos indivíduos!

    ResponderEliminar