Cantar do
Amigo Perfeito
Passado o
mar, passado o mundo, em longes praias,
de areia e
ténues vagas, como esta
em que
haverá de nossos passos a memória
embora
soterrada pela areia nova,
e em que
sobre as muralhas quanta sombra
na pedra
carcomida guarda que passámos,
em longes
praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda
recordas esta, ó meu amigo?
Aqui
passeámos tanta vez, por entre os corpos
da alheia
juventude, impudica ou severa,
esplêndida
ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se,
ido na brisa
o sol às mais sombrias curvas;
e o meu e o
teu olhar guiando-se leais,
de nós um
para o outro conquistando
- em longes
praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda
recordas, diz, ó meu amigo?
Também aqui
relembro as ruas tenebrosas,
de vulto em
vulto percorridas, lado a lado,
numa nudez
sem espírito, confiança
tranquila e
áspera, animal e tácita,
já menos que
amizade, mas diversa
da suspeição
do amor, tão cauta e delicada
- em longes
praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda as
recordas, diz, ó meu amigo?
Também aqui,
sorrindo em branda mágoa,
desfiámos,
sem palavras castamente cruas,
não já
sequer os íntimos segredos
que o
próprio amor, porque ama, não confessa,
nem a
vaidade humana dos sentidos, mas
subtis
fraquezas vis, ingénuas e secretas
- em longes
praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda
recordas, diz, ó amigo?
*
Partiste e
foi contigo a juventude.
Ficou o
silêncio adulto, pensativo e pródigo,
e o terror
de não ser minha estátua jacente
sobre o
túmulo frio onde as cinzas da infância
desmentem -
palpitar de traiçoeira fénix! -
que só do
amor ou só da terra haja saudade.
Em longes
praias, outras nuvens, outras vozes,
tu sabes que
a levaste, ó meu amigo?
(Jorge de
Sena faleceu faz hoje 38 anos)
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