Do Tempo ao
Coração
E volto a
murmurar Do cântico de amor
gerado na
Suméria às novas europutas
Do muito que
me dás ao muito que não dou
mas que
sempre conservo entre as coisas mais puras
De uma
genebra a mais num bar de Amsterdão
a não perder
o pé numa praia da Grécia
De
tantas tantas mãos que nos passam pelas mãos
a tão poucas
que são as que nunca se esquecem
De ter visto
o começo e o fim da Via Ápia
De ter
atravessado o muro de Berlim
De outros
muros que não aparecem no mapa
De outros
muros que só aparecem aqui
ao barro
deste céu que te modela os ombros
ao sopro
deste céu que te solta o cabelo
ao riso
deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe
que nós não precisamos dele
Da pertinaz
presença E da longevidade
do
corvo do chacal do louco do eunuco
ao rouxinol
que morre em plena madrugada
à rosa que
adormece em caules de um minuto
Do que foi
noutro tempo a saúde no campo
à lepra que
nos rói a paisagem bucólica
Do
tempo ao coração minado pelo
cancro
Dos
rins ao infinito incubado na
cólera
Do tempo ao
coração mas com pausa na pele
como «Roma
by night» entre dois aviões
como passar
o Verão numa vogal aberta
como dizer
que não que já não somos dois
Dos rins ao
infinito A este que não outro
Ao que rola
dos rins Ao que vai rebentar-te
na câmara
blindada e nocturna do útero
E nos
transfere o fim para um pouco mais tarde
Da curva de
entretanto à entrada do poço
De soletrar
em mim a ler nas tuas mãos
como é
rápido e lento e recto e sinuoso
o percurso
que vai do tempo ao coração.
(David
Mourão-Ferreira nasceu faz hoje 89 anos)
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