Lua nova
demais
Dorme tensa
a pequena
sozinha como
que suspensa no céu
Vira mulher
sem saber
sem brinco,
sem pulseira, sem anel
sem espelho,
sem conselho, laço de cabelo, bambolê
Sem mãe
perto,
sem pai
certo
sem cama
certa,
sem coberta,
vira mulher
com medo,
vira mulher
sempre cedo.
Menina de
enredo triste,
dedo em
riste,
contra o que
não sabe
quanto ao
que ninguém lhe disse.
A
malandragem, a molequice
se misturam
aos peitinhos novos
furando a
roupa de garoto que lhe dão
dentro da
qual mestruará
sempre com a
mesma calcinha,
sem
absorvente, sem escova de dente,
sem pano
quente, sem O B.
Tudo é nojo,
medo,
misturação
de “cadês.”
E a cólica,
a dor de
cabeça,
é sempre a
mesma merda,
a mesma dor,
de não ter
colo,
parque
pracinha,
penteadeira,
pátria.
Ela lua
pequenininha
não tem
batom, planeta, caneta,
diário,
hemisfério,
Sem entender
seu mistério,
ela luta até
dormir
mas é menina
ainda;
chupa o dedo
E tem medo
de ser
estuprada
pêlos
bêbados mendigos do Aterro
tem medo de
ser machucada, medo.
Depois
mestrua e muda de medo
o de ser
engravidada, emprenhada,
na noite do
mesmo Aterro.
Tem medo do
pai desse filho ser preso,
tem medo,
medo
Ela que
nunca pode ser ela direito,
ela que nem
ensaiou o jeito com a boneca
vai ter que
ser mãe depressa na calçada
ter filho
sem pensar, ter filho por azar
ser mãe e
vítima
Ter filho
pra doer,
pra bater,
pra
abandonar.
Se dorme,
dorme nada,
é o corpo
que se larga, que se rende
ao cansaço
da fome, da miséria,
da mágoa
deslavada
dorme de
boca fechada,
olhos
abertos,
vagina
trancada.
Ser ela
assim na rua
é estar
sempre por ser atropelada
pelo pau sem
dono
dos outros
meninos-homens sofridos,
do louco
varrido,
pela polícia
mascarada.
Fosse ela
cuidada,
tivesse
abrigo onde dormir,
caminho onde
ir,
roupa
lavada, escola, manicure, máquina de costura, bordado,
pintura,
teatro, abraço, casaco de lã
podia
borralheira
acordar um
dia
cidadã.
Sonha quem
cante pra ela:
“Se essa
Lua, Se essa Lua fosse minha...”
Sonha em ser
amada,
ter Natal,
filhos felizes,
marido,
vestido,
pagode
sábado no quintal.
Sonha e
acorda mal
porque
menina na rua,
é muito nova
é lua
pequena demais
é ser só
cratera, só buracos,
sem pele,
desprotegida, destratada
pela vida
crua
É estar
sozinha, cheia de perguntas
sem resposta
sempre
exposta, pobre lua
É ser
menina-mulher com frio
mas sempre
nua.
(poetisa,
actriz e cantora brasileira que hoje faz 57 anos)
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