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segunda-feira, fevereiro 23, 2015

Do Medo

É de ti que eu sou irmã
por ti fui trocada em criança
quando as estrelas semearam a noite
(Ficávamos chorando de medo
se o laço branco da trança não desse
para a escuridão toda do quarto)

Tenho os silêncios que me emprestaste
e na cidade que levantámos há pouco
(não destruiremos nunca)
habitam os pais
com os não irmãos mortos à nascença
que o eco de um flauta eternizou

no cais dos barcos pequenos de papel
somos irmãos de ninguém
ancorámos com amarras de dúvida

é nosso irmão o medo do poente
a porta azul da morte

Em redor em redor de nós
a solidão voou borboleta negra de metal
caiu enforcado público na gravata verde
(a mesma solidão que cega
os arcos concêntricos das pupilas)

desde a rua ao bolor dos corpos poetas
da porta esquecida sem número
à mulher vendida aos ventos da noite

sem nevoeiros asfixiamos nítidos
nos passeios nos fatos nas cadeiras
nas cúpulas nos clarins

e sentes contigo os corpos das mulheres
de bruços sobre o dia
renascidos maduros os limites da carne

Há nebulosas de anos sem sentido
que vimos aprendendo o amor

há um embrião de veia
há uma veia atávica vermelha
nos mil séculos anteriores ao homem

Quando nos será possível um suicídio exacto
em casas impossíveis
em ondas impossíveis
em (integralmente areia) desertos impossíveis?

Nasceu o sol na erva a erva nos degraus
os degraus desceram ao horizonte


(poetisa lisboeta falecida faz hoje 26 anos)

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