O Cerimonial
das Mãos
Mãe, onde
foi que deixaste a outra metade,
a que
anunciava o sol na turvação das noites,
a que
iluminava a sombra no cerimonial das mãos?
Em que
côncavo de rochas buscava abrigo
essa outra
metade que eu via projectada
para fora de
mim como um sonho evadindo-se
do círculo
de medos em que a fúria se jogava?
Eu era gémeo
de todos os assombros
e os meus
segredos era com essa outra metade
que os
partilhava à revelia das bocas
que em
surdina me traçavam o destino.
Quanto de
mim se perdia nessa metade
que me
furtava o riso e me deixava a culpa,
que me feria
o ventre e me fustigava a pele?
Quanto de
mim me flagelava
sem que eu
lhe conhecesse morada ou nome?
Mãe, eu
pedia uma trégua ao vento
e um punhal
à chuva e com ambos queria
separar de
mim a metade incandescente
que à beira
dos meus gestos
ganhava
altura de nuvem e fulgor de estrela.
Mãe, eu
vejo-me outro nesta cama
que guarda
os instrumentos liquefeitos da insónia
e sei que
não sou eu quem lá está,
que não sou
eu que lá quero estar.
(José Jorge
Letria faz hoje 61 anos)
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