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segunda-feira, maio 31, 2010

Vida

Sempre a desencorajada alma do homem
resoluta indo à luta.
(Os contingentes anteriores falharam?
Pois mandaremos novos contingentes
e outros mais novos.)
Sempre o cerrado mistério
de todas as idades deste mundo
antigas ou recentes;
sempre os ávidos olhos, hurras, palmas
de boas-vindas, o ruidoso aplauso;
sempre a alma insatisfeita,
curiosa e por fim não convencida,
lutando hoje como sempre,
batalhando como sempre.

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"
E terroristas são os outros!!!

domingo, maio 30, 2010

Eu quero duas rimas

Eu quero duas rimas para liberdade.
Nem cidade nem saudade,
nem faculdade nem eternidade.
Eu quero duas rimas para liberdade
para escrever um poema
que fale da fome de um operário,
que fale da angústia de um camponês.
Achei as duas rimas para liberdade!
Luta e União.

Amigos!
Sejamos todos poetas!
Utilizemos as rimas!
E escrevamos todos juntos.
de uma vez,
o poema da liberdade
que acabe com a fome de um operário,
que acabe com a angústia de um camponês.


*poeta, radialista, letrista e actor brasileiro.

sábado, maio 29, 2010

Os mortos

os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
       certas sinfonias
                 algum bater de portas,
       ventanias

           Ausentes
           de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
           se de fato
           quando vivos
           acharam a mesma graça
                
Ferreira Gullar*

*poeta brasileiro

quinta-feira, maio 27, 2010

Crise: soluções à inglesa
















Cartoon: Peter Brookes/The Times
VIDA 
  
Vida parada, vida. 
Tudo parado, tudo. 
Dia parado. 
Noite parada. 
Tarde parada. 
  
Vento que recusa movimento; 
Criança não brinca. 
Bola parada, 
Água parada, 
Varanda vazia. 
  
Calor parado, ardente. 
Corpo por cima do meu, 
Parado, 
Sem penetrar, 
Sem ser penetrado. 
  
Folhas paradas. 
Lábios molhados 
De saliva grossa 
Parados sem beijos, 
Sem desejos. 
  
Só o mundo insistente 
Continua a girar.

Fernando Tanajura Menezes*

*poeta baiano

quarta-feira, maio 26, 2010

Fotografia com história














A imagem é banal para nós mas tem, em si mesma, um grande significado, já que num reino em que as mulheres só podem sair à rua com a cara tapada e acompanhadas por um guardião (pai, marido ou irmão), somente alguém que não tem de prestar contas a ninguém no seu país, como o Rei Abdullah, pode fazer-se fotografar, juntamente com o seu filho e herdeiro, com um grupo de súbditas, quase todas de cara descoberta.

A foto de grupo, captada durante o Fórum de Diálogo Nacional sobre a Sociedade e Serviços de Saúde, foi saudada em todo o mundo como mais um pequeno passo do velho rei no sentido de tornar a Arábia Saudita um país menos opressor para as mulheres.

Talvez tenha sido animada por este e outros sinais que uma jovem de vinte e poucos anos decidiu dar um arraial de porrada  a um polícia da Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício. A jovem e um amigo estavam a passear num parque quando foram abordados por um polícia dos costumes para confirmar as suas identidades e parentesco, já que um homem e uma mulher não casados não podem passear juntos. Enquanto o rapaz colapsou, a jovem foi-se ao polícia e socou-o repetidamente, fazendo com que tivesse de ser transportado ao hospital com contusões no corpo e na cara. Ora toma!

Imagem: AFP/Getty Images

terça-feira, maio 25, 2010

A roda rangedora




















Cartoon: Tom Toles/Slate Magazine
Cave Canem

Aviso bem-humorado
na fachada das casas de Pompéia.

Mudam-se os tempos, mudam-se os desígnios
e o aviso permanece
curiosidade arqueológica do pai
na fachada de minha casa.

Porém hoje mais certo seria
poupar os cães desse cuidado
e escrever à entrada
de toda casa toda cidade todo país
mesmo na caixa-alta do itálico latim
CAVE HOMINES

Fernando Py*

*poeta carioca

domingo, maio 23, 2010

O deus implacável

sábado, maio 22, 2010

Pizas e cemitérios

Os napolitanos andam em alvoroço e não é para menos. Na cidade dominada pela máfia, que tem nas pizas um dos seus poucos símbolos duradouros, o ministério público acredita que algumas pizarias têm utilizado madeira de caixões usados para aquecerem os fornos. Numa cidade onde os cemitérios são terreno fértil para os ladrões - só no último ano foram roubados mais de cinco mil vasos de flores - não admira nada que a mira do lucro atinja tão macabros contornos, que o “Il Giornale” afirma estenderem-se também ao pão. 

sexta-feira, maio 21, 2010

Coligações



Cartoon: Peter Brookes/TheTimes
Ar

É da liberdade destes ventos
que me faço.

Pássaro-meu corpo
(máquina de viver),
bebe o mel feroz do ar
nunca o sossego.


*poetisa brasileira

(no seu 77º aniversário)

quinta-feira, maio 20, 2010

Jornalismo de sarjeta

O título da notícia reza: Portugal paga mais do dobro para emitir dívida. No entanto, lendo a notícia, descobre-se que a emissão de ontem da dívida foi colocada a um juro médio que ultrapassa o dobro do verificado em Abril mas que representa apenas 81% do juro médio do último leilão, realizado em 5 de Maio. Sabendo-se que a maioria dos leitores apenas olha para as “gordas” levanta-se a questão de saber ao serviço de quê e de quem estão estes arremedos de jornalistas.
Gramática

1. Fonética

Datilo
grafo
meu espasmo rude
em teu peito
e os dedos cravam
entre a bilabial
e a sibilante
o Ó
inaudível.

2. Vogais

Adiar
odiar
ode e ar.
As vogais se espalham
no céu da boca
e o sopro adiado
imobiliza
a língua
em forma de U.

3. Morfologia

Mastigo
um naco de sombra
e um assombro
de sílabas mudas
escorre dos dentes
entre os escombros
da memória calcinada.

4. Etimologia

Saber de cor
a água
a cor da pele
cada anseio
que a língua
recolhe.
Saber de cor
o coração.


5. Pontuação

Fotograma
atrás de fotograma
teu rosto
é a prolongada pausa
impressa na retina
entre parênteses
do travesseiro.

6. Linguagem figurada

Tropel de trapos
lençol amarfanhado
a convulsão
de umas sílabas rebeldes
desarrumando a cama
& a folha em branco:
o peito de quem ama.

7. Conjugação

Eu me arquipélago
tu te maravilhas
ele se istma
nós nos montanhamos
vós vos espraiais
eles se eclipsam.

Carlos Felipe Moisés*

*poeta paulista  

(no seu 68º aniversário)

quarta-feira, maio 19, 2010

Convite

Quando o povo tem fome, tem o direito de roubar, declarou o merceeiro mor do reino. Portanto, pobres do meu país, quando tiverdes fome ide ao Continente ou ao Modelo, trazei aquilo de que necessitardes e pagai só aquilo que puderdes, que o restante é por conta da casa.
Sugestão

As companheiras que não tive,
Sinto-as chorar por mim, veladas,
Ao pôr do sol, pelos jardins...
Na sua mágoa azul revive
A minha dor de mãos finadas
Sobre setins...

Mário de Sá-Carneiro, in Indícios de Oiro

terça-feira, maio 18, 2010

A Tirania do Medo

O nosso mundo vive demasiado sob a tirania do medo e insistir em mostrar-lhe os perigos que o ameaçam só pode conduzi-lo à apatia da desesperança. O contrário é que é preciso: criar motivos racionais de esperança, razões positivas de viver. Precisamos mais de sentimentos afirmativos do que de negativos. Se os afirmativos tomarem toda a amplitude que justifique um exame estritamente objectivo da nossa situação, os negativos desagregar-se-ão, perdendo a sua razão de ser. Mas se insistirmos em demasia nos negativos, nunca sairemos do desespero.

Bertrand Russell, in A Última Oportunidade do Homem
Angels 

Concentrating on an angels nest
that had caught my eye only moments
before, barely loud enough to hear
and whispered only to me. In the
depths of reality we lose our dreams.
I lit a smoke yet couldn’t grasp
its meaning. Utter silence followed,
Disrupted only by the increasing thump
of my heartbeat. Out of the life
known to me I went along. 'Till slowly
I regained consciousness and
the angels were gone.

segunda-feira, maio 17, 2010


Anda, vem

Anda, vem... por que te negas,
Carne morena, toda perfume?
Por que te calas,
Por que esmoreces
Boca vermelha, – rosa de lume!
Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos n'um beijo.

Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer,
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, – meu amor!

E ouve, mancebo alado,
Não entristeças, não penses,
- Sê contente,
Porque nem todo o prazer
Tem pecado...

Anda, vem... dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos;

Tenho saudades da vida!

Tenho sede dos teus beijos!


*(poeta vítima da homofobia)

domingo, maio 16, 2010

Tempus Fugit

O tempo começa
quando nascem certas flores.
O tempo denso de uma noite,
o seu perfume, a sua ardência,
de uma flor que não pode ver o
dia.
O tempo acaba
quando morrem certas flores.
O tempo evanescente de uma
garoa:
o seu afago, a sua frialdade,
de uma flor que não pode ver a
luz.
O tempo é noite, é bruma:
permanência do escuro entre as
estrelas,
uma passagem de arrepio entre
calores.
O tempo começa e o tempo
acaba,
tudo que dizemos sobre flores,
rápidos, efêmeros, doentes;
nossa mirada, uma miragem,
resvala em jardim, de madrugada.

Fernando Rocha Peres*

*poeta brasileiro
O poeta

Porque as flores florem e o flume flui,
e o vento varre a fúria vã das ruas,
eu desenfurno tudo quanto fui
e me corôo com meus sóis e luas.

Porque o vôo das aves é meu vôo,
e a nuvem é alcáçar que não rui,
paro a mó do pensamento onde môo
a vida, e abro no muro que me obstrui

a áurea, ástrea senda, a porta augusta.
Que me importa se a clepsidra corrói
as praças das infâncias em ruínas?

Poemas são meninos e meninas
ao sol do Pai, que tudo reconstrói.
Poeta é flor e flume em terra adusta.

Fernando Mendes Vianna*

*poeta brasileiro

sexta-feira, maio 14, 2010

Ridicularia e pacovice

Se Cavaco Silva seguiu Bento XVI como chefe do Estado do Vaticano, como parece resultar da sua pose de Presidente da República, numa altura em que Bento XVI agia como Papa, teve uma atitude ridícula e desprestigiante, andando como cão atrás do dono face ao representante de um Estado minúsculo que nem sequer integra de pleno direito a ONU e subvertendo o princípio constitucional segundo o qual Portugal é um estado laico. Se o fez na sua condição de cidadão, devia ter-se “despido” do estatuto de Presidente da República e deixado bem claro que era como simples cidadão que agia.

Como se a promiscuidade demonstrada não fosse suficiente, mais uma vez ficou patente a sua pacovice e curteza de vistas ao manifestar, perante as câmaras da televisão, o seu espanto pelo facto der o Papa ter repetido despachadamente o nome dos seus netos.  Goste-se ou não de Ratzinger - e eu não gosto - é reconhecidamente um homem de cultura, coisa que Cavaco Silva não faz a mínima ideia do que seja. E um homem de cultura, mais a mais com o estatuto que o Papa tem, quando decide dar uma audiência a uma família, prestando-se até a deslocar-se a sua casa, tem de o fazer com a adequada cortesia, pelo que necessita de ter conhecimento antecipado do nome das pessoas que vai encontrar. Alguém acredita que os serviços protocolares do Vaticano não tiveram o cuidado de escrever os nomes dos familiares directos do Presidente (filhos, cônjuges e netos) para que Bento XVI pudesse deles ter conhecimento antecipado? Eu não acredito e nem sequer presido a uma sociedade de amigos do tintol, quanto mais a uma República!
ALTA HORA DE LA NOCHE

Cuando sepas que he muerto no pronuncies mi nombre
porque se detendrá la muerte y el reposo.

Tu voz, que es la campana de los cinco sentidos,
serfa el tenue faro buscado por mi niebla.

Cuando sepas que he muerto di sílabas extrañas.
Pronuncia flor, abeja, lágrima, pan, tormenta.

No dejes que tus labios hallen mis once letras.
Tengo sueño, he amado, he ganado el silencio.

No pronuncies mi nombre cuando sepas que he muerto
desde la oscura tierra vendría por tu voz.

No pronuncies mi nombre, no pronuncies mi nombre,
Cuando sepas que he muerto no pronuncies mi nombre.

quinta-feira, maio 13, 2010

Aterrissage

Um risco nos íngremes
e queda vertical de reticência de sóis.

Brilhos mica,
facetas duras,
multiplicando a paisagem
como os olhos simultâneos de um inseto 

Tropicão, trambolhão
                      salto
                        pulo
                         rodopio
e a bola, espirala, resvala, rebola,
                        encarola,
                       desenrola 

e de novo
reta como uma bola, 

           rola... 

ROLA
e voa e vai varando vertiginosa o vácuo vago
e assoviiiia fino no espaço oco... 

UMA PEDRA ROLOU PELA ENCOSTA DA MONTANHA.

quarta-feira, maio 12, 2010

Ser ou não ser

Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.

Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.

Ofélia-Pátria jaz branca de amor.
Entre salgueiros passa flutuando.
E anda Hamlet em nós por ela perguntando
entre ser e não ser firmeza indecisão.

Até quando? Até quando?

Já de esperar se desespera. E o tempo foge
e mais do que a esperança leva o puro ardor.
Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje.
Ah se não ser é submissão ser é revolta.
Se a Dinamarca é para nós uma prisão
e Elsenor se tornou a capital da dor
ser é roubar à dor as próprias armas
e com elas vencer estes fantasmas
que andam à solta em Elsenor.

Melhorou um pouco

"Sempre se soube disso, mas hoje podemos constatar de maneira realmente aterradora: a maior das perseguições contra a Igreja não advém de inimigos externos, mas nasce do pecado no seio da Igreja, e a Igreja, portanto, tem uma profunda necessidade de reaprender a penitência, de aceitar a purificação, de aprender, por um lado, o perdão, mas também a justiça. O perdão não substitui a justiça."

Estas palavras de Bento XVI em resposta a uma pergunta que lhe foi feita no voo que o trouxe a Portugal são um forte desmentido às alegações de altos responsáveis do Vaticano de que havia uma campanha orquestrada contra a igreja a propósito da pedofilia e constituem a mais dura crítica interna escutada até agora. Falta passar das palavras aos actos, despadrar,  desbispar e descardealar os culpados e seus encobridores e entregá-los à justiça dos respectivos países.
Expectativa gorada

Afinal, as portas de Lisboa estavam abertas às 6H45, pelo que tive de puxar pelo cabedal durante o dia todo.

terça-feira, maio 11, 2010

Descanso?

Como o presidente da Câmara de Lisboa entregou a chave da cidade a Ratzinger, amanhã não posso entrar na cidade para trabalhar, pelo que também não vou ver o papa com a camisola do Benfica. Vou já telefonar a um representante do patrão para ir sacar o meu dia de ordenado ao patriarcado.
(In)decisão

Enquanto protelamos a vida passa por nós a correr. 
Séneca

Demasiado tarde e com custos grandemente acrescidos para toda a zona euro, nomeadamente para aqueles que se encontram em situação financeira mais crítica, os eternos irresolutos lá tomaram a decisão que poderá, espera-se, evitar o estrondoso fracasso de todo o projecto europeu. A dona de casa deixou-se convencer pelo saltinhos (e pelo espírito santo de orelha vindo do outro lado do Atlântico), mas o seu titubear de nada lhe serviu, já que os eleitores do maior Estado da Alemanha lhe deram uma lição nas urnas, retirando-lhe a maioria na Câmara Alta. Como diz o velho ditado, accepto damno januam claudere!

segunda-feira, maio 10, 2010

O saque e a crise

A brigada do reumático

Mais de trinta e seis anos depois e por entre as aclamações da imprensa do costume uma nova “brigada do reumático” dirigiu-se ao palácio de Belém. Desta vez constituída não por generais caquécticos mas por uma dúzia de economistas, a maioria senis e todos eles com fortes responsabilidades na situação a que chegou o estado das nossas finanças públicas.

De tão faustoso conclave nada saiu de útil, apenas o apoio ao agravamento das condições de vida da classe trabalhadora mas, amanhã e depois, vamos ver alguns deles a baterem com a mão no peito e a correrem pressurosos no encalço do senhor absoluto do Vaticano. Cui pudor non est, orbi dominator! Amém!

domingo, maio 09, 2010

leve sorriso

vi que nevava em galhos nus
sobre eles inclinava-se piedoso um rosto

subi ao silêncio

soava leve o seu sorriso
de criança muda

meu coração a procurar na abóbada das sombras
a sua morada

e havia luz na alegria
que deixei muito próxima
da fonte do bosque
onde bebi a água mais azul

Maria Costa*

*poetisa mafrense

sábado, maio 08, 2010

Maioria

Se toda a humanidade menos um fosse da mesma opinião, e apenas um indivíduo fosse de opinião contrária, a humanidade não teria maior direito de silenciar essa pessoa do que esta o teria, se pudesse, de silenciar a humanidade.

deusas de ruas  

nem bucólicas nem divinas
nem correm o risco de ser jovens
dormem nas ruas

parecem desenhar o frio
e o futuro

com uma mão entrelaçada ao colo
e outra peregrina do vazio

cópias estelares de virgens  

Maria Azenha*

*poetisa coimbrã

sexta-feira, maio 07, 2010

Liderança

Não é tarefa fácil dirigir os homens; empurrá-los, pelo contrário, é muito simples.

O Último Negócio

Certa manhã
ia eu pelo caminho pedregoso,
quando, de espada desembainhada,
chegou o Rei no seu carro.
Gritei:
- Vendo-me!
O Rei tomou-me pela mão e disse:
- Sou poderoso, posso comprar-te.
Mas de nada lhe serviu o seu poder
e voltou sem mim no seu carro.

As casas estavam fechadas
ao sol do meio dia,
e eu vagueava pelo beco tortuoso
quando um velho
com um saco de oiro às costas
me saiu ao encontro.
Hesitou um momento, e disse:
- Posso comprar-te.
Uma a uma contou as suas moedas.
Mas eu voltei-lhe as costas
e fui-me embora.

Anoitecia e a sebe do jardim
estava toda florida.
Uma gentil rapariga
apareceu diante de mim, e disse:
- Compro-te com o meu sorriso.
Mas o sorriso empalideceu
e apagou-se nas suas lágrimas.
E regressou outra vez à sombra,
sozinha.

O sol faiscava na areia
e as ondas do mar
quebravam-se caprichosamente.
Um menino estava sentado na praia
brincando com as conchas.
Levantou a cabeça
e, como se me conhecesse, disse:
- Posso comprar-te com nada.
Desde que fiz este negócio a brincar,
sou livre.

Rabindranath Tagore, in O Coração da Primavera

(Tradução de Manuel Simões)

quinta-feira, maio 06, 2010

Espírito

Esta flor delicada,
De que me vale?
Só lhe devo o mal!

Esta flor delicada
Que não veio do sangue, nem da raça,
É a minha desgraça.

Quando eu nasci beijou-me a luz de um astro
Que se apagou na madrugada...

Ai de mim! E nasceu esta flor delicada.

Fim da 3ª via?

Cartoon: Peter Brookes/The Times

quarta-feira, maio 05, 2010

Filosofia

Hora de comer - comer!
Hora de dormir - dormir!
Hora de vadiar - vadiar!

Hora de trabalhar?
- Pernas pro ar que ninguém é de ferro!


*poeta pernambucano

terça-feira, maio 04, 2010

Certa vez

Certa vez... Vá, não cores desse jeito!
Eu era um estudante de direito,
Tu eras uma simples normalista:
Podíamos, portanto, meu tesouro,
Fazer, como fizemos, sem desdouro,
Essa loucura que hoje te contrista.

Com que emoção — recordas? — com que gozo,
Eu vinha te esperar, vibrante e ansioso,
Nessas novenas de plangências cavas.
E como um cavalheiro que se preza,
Timbrava em te levar, depois da reza,
Até ao portão da chácara em que estavas.

Certa vez... Vá, não cores desse jeito!
Era de noite. Arfava-nos o peito.
Ardia em nós um lânguido desejo,
Tomei-te as mãos... Sorriste... E aí, num assomo,
As nossas bocas, sem sabermos como,
Famintamente uniram-se num beijo!


* poeta paulista

segunda-feira, maio 03, 2010

Citações roubadas

Quem é original neste mundo? Quem tem o dom inimitável? Quem é capaz de dormir em paz, com a certeza de não ter copiado a palavra do outro, o pensamento do vizinho, a idéia do colega?  

Desisti dessa pretensão de dizer o que ninguém disse antes. De fazer a abordagem que não deixasse margem à dúvida de que eu (este eu que é meu!) penso por conta própria.  

Bela ilusão achar que vou achar um modo inconfundível de escrever. Bela vaidade de fugir à vaia que todos os plagiadores merecem, em meio a alguns aplausos... Bela pretensão que me provoca essa tensão diária, e que aumenta um pouco minha pobre auto-estima.  

Eu, com boas ou más intenções, não importa, sei perfeitamente o quanto é belo e inútil o meu esforço. O esforço de jamais repetir o que outros já produziram em verso e prosa é um esforço belo e inútil. Inútil e belo.  

No entanto, há um jeito que dê jeito nessa história mais ou menos bem contada. Se não posso ser original, que ao menos aproveite a originalidade alheia, com a consciência (pesada!) de quem sabe que nada vem do nada.  

Por isso eu aviso, e dispenso as aspas e o anticaspa. As citações abaixo foram roubadas, furtadas, arrebatadas de outros escritores, pensadores, de outros autores, de pessoas conhecidas ou anônimas.  

Foram roubadas de vocês, de todos nós:  

Cito, logo existo.  

A ocasião faz a citação.  

Só sei que não sei citar a mim mesmo.

Minha terra tem palmtops onde canta, como nunca, Michael Jackson.  

Citar os outros é pensar por conta alheia, e roubar citações sem dizer quem as inventou... é atuar por conta própria.  

Ler é ingressar num mundo de vitórias e derrotas, no qual os sentimentos mais variados vêm à tona.  

Escrever é lembrar-se... para enfim esquecer.  

Cuidado com o que você diz: as suas mentiras podem se tornar a verdade dos outros.  

A vida em sociedade obriga-nos à informação mútua, ou nos tornaremos uns espiões dos outros.  

A primeira coisa a entender com urgência é que não entendemos tudo.
Citar os outros é não citar a si mesmo, e citar os outros sem revelar autores... é recitar o mesmo.  

Caminhando e citando e perseguindo novas citações.  

Estamos condenados à citação.  

O inferno é a citação dos outros.  

Quem cita por último cita melhor. 


*professor e escritor

Publicado no jornal digital Correio da Cidadania

domingo, maio 02, 2010

Ser cidadão

Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, gêneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida. ..... Atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!

sábado, maio 01, 2010

Elogio da dialéctica

A injustiça avança hoje a passo firme.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são.
Nenhuma voz além da dos que mandam.
E em todos os mercados proclama a exploração: isto é
                                                           apenas o começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos.

Quem ainda está vivo nunca diga: nunca.
O que é seguro não é seguro.
As coisas não continuarão a ser como são.
Depois de falarem os dominantes.
Falarão os dominados.
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós.
De quem depende que ela acabe? Também de nós.
O que é esmagado, que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
E nunca será: ainda hoje.

 Bertold Brecht