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sexta-feira, abril 18, 2008

Ingenuidades... Pensava eu, na minha ingenuidade quase sexagenária, que as farmacêuticas (pelo menos as grandes) estavam sujeitas a um código deontológico bastante sólido, considerando o risco que os seus produtos representam para a saúde. Imaginava eu, na minha candura martirizada por décadas de atentados à minha boa fé, que a FDA, apesar das frequentes queixas de falta de meios, exercia um controlo eficaz sobre os produtores de medicamentos da, até ver, maior potência económica mundial. Estava eu convencido, pois, de que um medicamento produzido por uma multinacional estado-unidense ou, ao menos, sob a sua supervisão técnica, era relativamente seguro, ou pelo menos mais seguro, do que os produzidos por um qualquer laboratório da África do Sul, da China ou da Índia. Estava, mas é mais prudente deixar de estar. Primeiro foi a reputação da Lilly que andou pelas ruas da amargura, com a denúncia de que o Prozac, também conhecido como “pílula da felicidade”, não tinha mais efeitos benéficos do que um vulgar placebo. Agora é a integridade da Merck que é posta em causa. Esta multinacional farmacêutica é produtora de vários medicamentos líderes de vendas, entre os quais o Vioxx, medicamento largamente utilizado para aliviar as dores da artrite devido a ser inofensivo para o estômago do doente, que teve de retirar do mercado em 2004, após o aparecimento de provas que o ligavam a ataques cardíacos. No último Outono, a Merck acordou pagar o montante de quatro mil e oitocentos e cinquenta milhões de dólares para pôr termo a dezenas de milhares de processos intentados por antigos pacientes ou pelas suas famílias. A edição de anteontem do JAMA (The Journal of the American Medical Association), um jornal médico líder, publicou um estudo, liderado por dois especialistas que foram peritos da acusação em vários processos relacionados com o Vioxx, no qual se revela que a Merck redigiu dezenas de estudos de pesquisa para este medicamento, conseguindo depois obter o reconhecimento e a assinatura de médicos prestigiados antes de os relatórios serem publicados. O artigo, baseado em documentos vindos a lume durante os processos e aos quais os dois especialistas tiveram livre acesso como peritos, fornece um detalhado panorama da prática de “escrita fantasma” nos artigos de investigação médica que depois são publicados em jornais académicos. A “escrita fantasma” (ghostwriting em inglês), consiste em alguém, sem credenciais científicas adequadas, elaborar o rascunho de um artigo de investigação, o qual depois é subscrito por especialistas que pouco ou nenhum contributo deram para o mesmo. No caso das farmacêuticas, os “redactores fantasma” são empregados das empresas. Parece que a prática está bastante disseminada no meio farmacêutico, o que, para além de provocar sérios danos à credibilidade da investigação científica como um todo, coloca em causa a vida de centenas de milhões de doentes em todo o mundo, o que é muito mais grave. Embora alguns dos tais médicos prestigiados já tenham vindo dizer que as afirmações são falsas, esperemos que a verdade seja devidamente apurada e, se for caso disso, os responsáveis sejam exemplarmente punidos. A justiça estado-unidense é algo complexa mas, em situações semelhantes, não costuma brincar em serviço. Basta ver os anos de prisão a que foram condenados os responsáveis pela falência da Enron. Informação mais pormenorizada pode ser lida aqui, onde também se encontra a ligação para o estudo publicado no JAMA.

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