Cenas da vida (ir)real
De segunda a sexta, chova ou faça sol, ao passar de carro à porta da Procuradoria Geral da República, na Rua da Escola Politécnica (a 50 metros do Rato), por volta das 7H00 da manhã, lá está um casal de seniores a montar o seu painel de protesto.
Já tinha lá passado várias vezes a pé, apercebendo-me de que reclamavam justiça para alguma malfeitoria de que tinham sido vítimas. Até que um dia destes indaguei sobre os motivos da sua presença diária ali, há mais de 11 anos (mais de 4.000 dias). E o que ouvi é de estarrecer.
Segundo o Sr. Florindo - assim se chama o cavalheiro - que conta 72 anos de idade, ele veio para Lisboa, fugido à pobreza de Nelas, ainda antes dos dez anos de idade, completando a quarta classe e arranjando logo emprego numa fábrica de vidros ali ao Campo de Santana. Mandou, então, vir ter com ele os seus dois irmãos, ocupando-se do sustento e educação dos dois até que eles conseguissem um lugar ao sol: um é juiz desembargador e outro notário.
Casou com Flora - a senhora que o acompanha no protesto - em Novembro de 1964 e era proprietário de uma pequena fábrica de espelhos em Santiago do Cacém, donde se reformou em 1995.
Um dia, tentaram vender uma das suas propriedades e verificaram, com espanto, que a mesma se encontrava registada em nome de outra pessoa. O que se teria passado?
Diz o Sr. Florindo que tudo começou em 1964, alguns dias depois do casamento, em que ele terá sido dado como morto e a esposa como casada com outro homem, após o que viria, também, a ser dada como morta. Estão ambos “sepultados” no cemitério de Aljustrel.
Tratar-se-ia de uma maquinação diabólica dos seus dois irmãos - um juiz desembargador e um notário, registe-se - para lhe sacarem os documentos, os bens e o dinheiro. Durante bastante tempo havia na parede um enorme cartaz, onde se acusavam os dois da enorme falcatrua. Recordo perfeitamente que tinham o apelido Beja, o mesmo do Sr. Florindo, mas omito os nomes próprios.
E assim, desde o dia 18 de Março de 1996, a casal “morto” e “sepultado” em Aljustrel, protesta ali, junto à Procuradoria, tentando ver apurada a verdade. Já por lá passaram Cunha Rodrigues, Souto de Moura e, agora, Pinto Monteiro, que devem achar “divertida” a atitude do casal. Já foram dados como “maluquinhos” por um psiquiatra do Hospital Miguel Bombarda e medicados com uma dose de drogas - cujo nome exibem e não compraram – que me pareceu suficiente para pôr verdadeiramente maluco um touro de lide. O Sr. Florindo diz que já foi preso mais de 30 vezes e que tentaram interná-los num hospício à força. Recorreram a tudo e mais alguma coisa, desde o Provedor de Justiça ao Presidente da República, do Primeiro Ministro ao Grupo Parlamentar de CDS-PP, da Ordem dos Médicos ao Conselho Superior de Magistratura, da Procuradoria ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Mortos não estão, que eu falei com eles e ainda na passada sexta feira lá surgiram na televisão quando as câmaras filmavam a provedora da Casa Pia a sair da Procuradoria. Maluquinhos também não parecem, mas nunca se sabe. Mas não é difícil apurar a verdade. As suas impressões digitais hão-de constar em qualquer arquivo. Se tinham prédios que lhes foram “roubados”, tem de haver notícia nos registos prediais. Se tiveram problemas com “roubo” de dinheiros e com as pensões de reforma, deve haver informação nos bancos. Com os actuais meios de investigação, é possível saber a quem pertencem as ossadas do túmulo de Aljustrel. Então porque não se apura a verdade? Estão à espera de que o país seja alvo de chacota na arena internacional, se o Tribunal Europeu intervier?
Senhor Procurador Geral da República: deixe-se de tretas hilariantes sobre ruídos no seu telemóvel, pois qualquer leigo sabe que é possível efectuar escutas sem provocar ruídos e cumpra as suas obrigações, seja na questão das escutas ilegais sejam “ressuscitando” legalmente dois cidadãos que todos os dias estão bem vivos à sua porta. E se tiverem razão, que se puna exemplarmente os dois responsáveis, que ocupam cargos destacados na Administração Pública; se, pelo contrário, se tratar mesmo de uma patologia psíquica (uma tal de “folie à deux”, que lhes “diagnosticaram”), então que se propicie ao casal um tratamento adequado.
Assim, é que não!
(fotografia de Jorge Godinho/Correio da Manhã)
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