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quarta-feira, abril 25, 2007

As Portas que Abril Abriu


Mesmo do outro lado do Atlântico e do outro lado do equador, não posso deixar de recordar a voz pausada de Luís Filipe Costa a ler o comunicado do Movimento das Forças Armadas, na madrugada de 25 de Abril de 1974, tinha eu 24 anos e já lá vão 33.

Para o efeito, escolhi um poema do grande Zé Carlos Ary dos Santos, As Portas que Abril Abriu.

Por mais que os saudosistas recordem o bolor salazarento, por muito que a desilusão se tenha apoderado dos que se lembram, como se fosse hoje, do povo nas ruas, pese embora a muita ignorância que, a respeito dos factos ocorridos, grassa em largas camadas da população, As Portas que Abril Abriu ainda estão entre-abertas. Cabe-nos não deixar que se fechem de todo.

Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava

a sua própria pobreza.

...

Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!


José Carlos Ary dos Santos

Lisboa, Julho-Agosto de 1975

Devido à sua extensão, o poema completo está em Comentário 1

5 comentários:

  1. «As Portas que Abril Abriu«

    Era uma vez um país
    onde entre o mar e a guerra
    vivia o mais infeliz
    dos povos à beira-terra.
    Onde entre vinhas sobredos
    vales socalcos searas
    serras atalhos veredas
    lezírias e praias claras
    um povo se debruçava
    como um vime de tristeza
    sobre um rio onde mirava
    a sua própria pobreza.

    Era uma vez um país
    onde o pão era contado
    onde quem tinha a raiz
    tinha o fruto arrecadado
    onde quem tinha o dinheiro
    tinha o operário algemado
    onde suava o ceifeiro
    que dormia com o gado
    onde tossia o mineiro
    em Aljustrel ajustado
    onde morria primeiro
    quem nascia desgraçado.


    Era uma vez um país
    de tal maneira explorado
    pelos consórcios fabris
    pelo mando acumulado
    pelas ideias nazis
    pelo dinheiro estragado
    pelo dobrar da cerviz
    pelo trabalho amarrado
    que até hoje já se diz
    que nos tempos do passado
    se chamava esse país
    Portugal suicidado.

    Ali nas vinhas sobredos
    vales socalcos searas
    serras atalhos veredas
    lezírias e praias claras
    vivia um povo tão pobre
    que partia para a guerra
    para encher quem estava podre
    de comer a sua terra.

    Um povo que era levado
    para Angola nos porões
    um povo que era tratado
    como a arma dos patrões
    um povo que era obrigado
    a matar por suas mãos
    sem saber que um bom soldado
    nunca fere os seus irmãos.

    Ora passou-se porém
    que dentro de um povo escravo
    alguém que lhe queria bem
    um dia plantou um cravo.

    Era a semente da esperança
    feita de força e vontade
    era ainda uma criança
    mas já era a liberdade.

    Era já uma promessa
    era a força da razão
    do coração à cabeça
    da cabeça ao coração.
    Quem o fez era soldado
    homem novo capitão
    mas também tinha a seu lado
    muitos homens na prisão.

    Esses que tinham lutado
    a defender um irmão
    esses que tinham passado
    o horror da solidão
    esses que tinham jurado
    sobre uma côdea de pão
    ver o povo libertado
    do terror da opressão.

    Não tinham armas é certo
    mas tinham toda a razão
    quando um homem morre perto
    tem de haver distanciação

    uma pistola guardada
    nas dobras da sua opção
    uma bala disparada
    contra a sua própria mão
    e uma força perseguida
    que na escolha do mais forte
    faz com que a força da vida
    seja maior do que a morte.

    Quem o fez era soldado
    homem novo capitão
    mas também tinha a seu lado
    muitos homens na prisão.

    Posta a semente do cravo
    começou a floração
    do capitão ao soldado
    do soldado ao capitão.

    Foi então que o povo armado
    percebeu qual a razão
    porque o povo despojado
    lhe punha as armas na mão.

    Pois também ele humilhado
    em sua própria grandeza
    era soldado forçado
    contra a pátria portuguesa.

    Era preso e exilado
    e no seu próprio país
    muitas vezes estrangulado
    pelos generais senis.

    Capitão que não comanda
    não pode ficar calado
    é o povo que lhe manda
    ser capitão revoltado
    é o povo que lhe diz
    que não ceda e não hesite
    – pode nascer um país
    do ventre duma chaimite.

    Porque a força bem empregue
    contra a posição contrária
    nunca oprime nem persegue
    – é força revolucionária!

    Foi então que Abril abriu
    as portas da claridade
    e a nossa gente invadiu
    a sua própria cidade.

    Disse a primeira palavra
    na madrugada serena
    um poeta que cantava
    o povo é quem mais ordena.

    E então por vinhas sobredos
    vales socalcos searas
    serras atalhos veredas
    lezírias e praias claras
    desceram homens sem medo
    marujos soldados «páras»
    que não queriam o degredo
    dum povo que se separa.
    E chegaram à cidade
    onde os monstros se acoitavam
    era a hora da verdade
    para as hienas que mandavam
    a hora da claridade
    para os sóis que despontavam
    e a hora da vontade
    para os homens que lutavam.

    Em idas vindas esperas
    encontros esquinas e praças
    não se pouparam as feras
    arrancaram-se as mordaças
    e o povo saiu à rua
    com sete pedras na mão
    e uma pedra de lua
    no lugar do coração.

    Dizia soldado amigo
    meu camarada e irmão
    este povo está contigo
    nascemos do mesmo chão
    trazemos a mesma chama
    temos a mesma ração
    dormimos na mesma cama
    comendo do mesmo pão.
    Camarada e meu amigo
    soldadinho ou capitão
    este povo está contigo
    a malta dá-te razão.

    Foi esta força sem tiros
    de antes quebrar que torcer
    esta ausência de suspiros
    esta fúria de viver
    este mar de vozes livres
    sempre a crescer a crescer
    que das espingardas fez livros
    para aprendermos a ler
    que dos canhões fez enxadas
    para lavrarmos a terra
    e das balas disparadas
    apenas o fim da guerra.

    Foi esta força viril
    de antes quebrar que torcer
    que em vinte e cinco de Abril f
    ez Portugal renascer.

    E em Lisboa capital
    dos novos mestres de Aviz
    o povo de Portugal
    deu o poder a quem quis.

    Mesmo que tenha passado
    às vezes por mãos estranhas
    o poder que ali foi dado
    saiu das nossas entranhas.
    Saiu das vinhas sobredos
    vales socalcos searas
    serras atalhos veredas
    lezírias e praias claras
    onde um povo se curvava
    como um vime de tristeza
    sobre um rio onde mirava
    a sua própria pobreza.

    E se esse poder um dia
    o quiser roubar alguém
    não fica na burguesia
    volta à barriga da mãe.
    Volta à barriga da terra
    que em boa hora o pariu
    agora ninguém mais cerra
    as portas que Abril abriu.

    Essas portas que em Caxias
    se escancararam de vez
    essas janelas vazias
    que se encheram outra vez
    e essas celas tão frias
    tão cheias de sordidez
    que espreitavam como espias
    todo o povo português.

    Agora que já floriu
    a esperança na nossa terra
    as portas que Abril abriu
    nunca mais ninguém as cerra.

    Contra tudo o que era velho
    levantado como um punho
    em Maio surgiu vermelho
    o cravo do mês de Junho.

    Quando o povo desfilou
    nas ruas em procissão
    de novo se processou
    a própria revolução.

    Mas eram olhos as balas
    abraços punhais e lanças
    enamoradas as alas
    dos soldados e crianças.

    E o grito que foi ouvido
    tantas vezes repetido
    dizia que o povo unido
    jamais seria vencido.

    Contra tudo o que era velho
    levantado como um punho
    em Maio surgiu vermelho
    o cravo do mês de Junho.

    E então operários mineiros
    pescadores e ganhões
    marçanos e carpinteiros
    empregados dos balcões
    mulheres a dias pedreiros
    reformados sem pensões
    dactilógrafos carteiros
    e outras muitas profissões
    souberam que o seu dinheiro
    era presa dos patrões.

    A seu lado também estavam
    jornalistas que escreviam
    actores que se desdobravam
    cientistas que aprendiam
    poetas que estrebuchavam
    cantores que não se vendiam
    mas enquanto estes lutavam
    é certo que não sentiam
    a fome com que apertavam
    os cintos dos que os ouviam.

    Porém cantar é ternura
    escrever constrói liberdade
    e não há coisa mais pura
    do que dizer a verdade.

    E uns e outros irmanados
    na mesma luta de ideais
    ambos sectores explorados
    ficaram partes iguais.

    Entanto não descansavam
    entre pragas e perjúrios
    agulhas que se espetavam
    silêncios boatos murmúrios
    risinhos que se calavam
    palácios contra tugúrios
    fortunas que levantavam
    promessas de maus augúrios
    os que em vida se enterravam
    por serem falsos e espúrios
    maiorais da minoria
    que diziam silenciosa
    e que em silêncio fazia
    a coisa mais horrorosa:
    minar como um sinapismo
    e com ordenados régios
    o alvor do socialismo
    e o fim dos privilégios.

    Foi então se bem vos lembro
    que sucedeu a vindima
    quando pisámos Setembro
    a verdade veio acima.

    E foi um mosto tão forte
    que sabia tanto a Abril
    que nem o medo da morte
    nos fez voltar ao redil.

    Ali ficámos de pé
    juntos soldados e povo
    para mostrarmos como é
    que se faz um país novo.

    Ali dissemos não passa!
    E a reacção não passou.
    Quem já viveu a desgraça
    odeia a quem desgraçou.

    Foi a força do Outono
    mais forte que a Primavera
    que trouxe os homens sem dono
    de que o povo estava à espera.

    Foi a força dos mineiros
    pescadores e ganhões
    operários e carpinteiros
    empregados dos balcões
    mulheres a dias pedreiros
    reformados sem pensões
    dactilógrafos carteiros
    e outras muitas profissões
    que deu o poder cimeiro
    a quem não queria patrões.

    Desde esse dia em que todos
    nós repartimos o pão
    é que acabaram os bodos
    — cumpriu-se a revolução.

    Porém em quintas vivendas
    palácios e palacetes
    os generais com prebendas
    caciques e cacetetes
    os que montavam cavalos
    para caçarem veados
    os que davam dois estalos
    na cara dos empregados
    os que tinham bons amigos
    no consórcio dos sabões
    e coçavam os umbigos
    como quem coça os galões
    os generais subalternos
    que aceitavam os patrões
    os generais inimigos
    os generais garanhões
    teciam teias de aranha
    e eram mais camaleões
    que a lombriga que se amanha
    com os próprios cagalhões.
    Com generais desta apanha
    já não há revoluções.

    Por isso o onze de Março
    foi um baile de Tartufos
    uma alternância de terços
    entre ricaços e bufos.

    E tivemos de pagar
    com o sangue de um soldado
    o preço de já não estar
    Portugal suicidado.

    Fugiram como cobardes
    e para terras de Espanha
    os que faziam alardes
    dos combates em campanha.

    E aqui ficaram de pé
    capitães de pedra e cal
    os homens que na Guiné
    aprenderam Portugal.

    Os tais homens que sentiram
    que um animal racional
    opõe àqueles que o firam
    consciência nacional.

    Os tais homens que souberam
    fazer a revolução
    porque na guerra entenderam
    o que era a libertação.

    Os que viram claramente
    e com os cinco sentidos
    morrer tanta tanta gente
    que todos ficaram vivos.

    Os tais homens feitos de aço
    temperado com a tristeza
    que envolveram num abraço
    toda a história portuguesa.

    Essa história tão bonita
    e depois tão maltratada
    por quem herdou a desdita
    da história colonizada.

    Dai ao povo o que é do povo
    pois o mar não tem patrões.
    – Não havia estado novo
    nos poemas de Camões!

    Havia sim a lonjura
    e uma vela desfraldada
    para levar a ternura
    à distância imaginada.

    Foi este lado da história
    que os capitães descobriram
    que ficará na memória
    das naus que de Abril partiram

    das naves que transportaram
    o nosso abraço profundo
    aos povos que agora deram
    novos países ao mundo.

    Por saberem como é
    ficaram de pedra e cal
    capitães que na Guiné
    descobriram Portugal.

    E em sua pátria fizeram
    o que deviam fazer:
    ao seu povo devolveram
    o que o povo tinha a haver:
    Bancos seguros petróleos
    que ficarão a render
    ao invés dos monopólios
    para o trabalho crescer.
    Guindastes portos navios
    e outras coisas para erguer
    antenas centrais e fios
    dum país que vai nascer.

    Mesmo que seja com frio
    é preciso é aquecer
    pensar que somos um rio
    que vai dar onde quiser

    pensar que somos um mar
    que nunca mais tem fronteiras
    e havemos de navegar
    de muitíssimas maneiras.

    No Minho com pés de linho
    no Alentejo com pão
    no Ribatejo com vinho
    na Beira com requeijão
    e trocando agora as voltas
    ao vira da produção
    no Alentejo bolotas
    no Algarve maçapão
    vindimas no Alto Douro
    tomates em Azeitão
    azeite da cor do ouro
    que é verde ao pé do Fundão
    e fica amarelo puro
    nos campos do Baleizão.
    Quando a terra for do povo
    o povo deita-lhe a mão!

    É isto a reforma agrária
    em sua própria expressão:
    a maneira mais primária
    de que nós temos um quinhão
    da semente proletária
    da nossa revolução.

    Quem a fez era soldado
    homem novo capitão
    mas também tinha a seu lado
    muitos homens na prisão.

    De tudo o que Abril abriu
    ainda pouco se disse
    um menino que sorriu
    uma porta que se abrisse
    um fruto que se expandiu
    um pão que se repartisse
    um capitão que seguiu
    o que a história lhe predisse
    e entre vinhas sobredos
    vales socalcos searas
    serras atalhos veredas
    lezírias e praias claras
    um povo que levantava
    sobre um rio de pobreza
    a bandeira em que ondulava
    a sua própria grandeza!
    De tudo o que Abril abriu
    ainda pouco se disse
    e só nos faltava agora
    que este Abril não se cumprisse.
    Só nos faltava que os cães
    viessem ferrar o dente
    na carne dos capitães
    que se arriscaram na frente.

    Na frente de todos nós
    povo soberano e total
    que ao mesmo tempo é a voz
    e o braço de Portugal.

    Ouvi banqueiros fascistas
    agiotas do lazer
    latifundiários machistas
    balofos verbos de encher
    e outras coisas em istas
    que não cabe dizer aqui
    que aos capitães progressistas
    o povo deu o poder!
    E se esse poder um dia
    o quiser roubar alguém
    não fica na burguesia
    volta à barriga da mãe!
    Volta à barriga da terra
    que em boa hora o pariu
    agora ninguém mais cerra
    as portas que Abril abriu!

    José Carlos Ary dos Santos

    Lisboa, Julho-Agosto de 1975

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  2. LINDO!
    25 de Abril SEMPRE!

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  3. Grande, grande, grande Ary!!! Tenho a fotobiografia dele em lugar de destaque na minha "biblioteca". Não só a li de fio a pavio, como, de vez em quando, dou uma espreitadela nos memoráveis poemas.
    Grande Ary e grande Grande escolha, Lino.
    Jocas grandes

    PS: 25 de Abril SEMPRE... nem que os cães uivem! :)

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  4. O 25 de Abril de 1974 foi um dia único e cheio de emoções para quem o viveu de perto.
    São momentos, sons e imagens que não quero apagar da minha memória.
    Lisboa calcorreada a pé pelo meio dos soldados, pelo meio de uma revolução única e que jamais se repetirá em qualquer parte do mundo.
    Sem medos ou receios, homens, mulheres e crianças sairam á rua em liberdade e segurança.
    Igual a este dia só o 1º de Maio de 1974 que uniu o povo num mesmo ideal, sem sectarismos partidários.
    Da Praça do Comércio ao Estádio 1º de Maio de mãos dadas e a cantar liberdade, liberdade, liberdade.

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  5. EXCELENTE!
    EXCELENTE!
    VIVA O 25 DE ABRIL!
    Abraço

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