sábado, julho 31, 2010

os fogos da fala

a fala aflora à flor da boca
às vezes como fogos de artifício
fulguração contra os terrores do silêncio
só espada espavento espelho
ou pedra ficção arremessada
ou canção para cantar as graças
as virilhas as maravilhas da amada
a deusa idolatrada do amor:
essa outra voz quase jazz
que subjaz ventríloqua de si mesma

Geraldo Carneiro

(poeta brasileiro)

sexta-feira, julho 30, 2010

DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

Mario Quintana
In memoriam

O português fala de qualquer coisa com grande convicção, mesmo quando não percebe nada do está a falar.

O excelente actor, encenador e humorista não conseguiu, para seu mal e da cultura portuguesa, “matar o bicho a rir”, mas antecipou de forma certeira as declarações do Presidente da República de turno. Obrigado pelas gargalhadas que nos proporcionaste e requiescat in pace.

quinta-feira, julho 29, 2010

Aleivosias de Bolonha

Sempre me interroguei por que motivo não houve cá no burgo - ao contrário do que aconteceu noutros países, mormente no nosso vizinho do lado, manifestações de desagrado contra a gaguice do processo de Bolonha, até que concluí que tal se deveu ao facto de andar meio mundo distraído e o outro meio a dormir na forma.

O engenheiro Mariano, também conhecido por o Gago, parece não se ter preocupado nada com a sorte dos licenciados e bacharéis anteriores à adopção do tal processo, pelo que os antigos alunos que se esforçaram durante 5 anos para obter uma licenciatura estão, em termos de concursos para cargos públicos, em situação de inferioridade perante os mestres pós Bolonha, que estudaram os mesmíssimos 5 anos, de acordo com os fundamentos desta Petição, já assinada por mais de cem mil cidadãos.

Estão os candidatos a cargos públicos e vão passar a estar os que pretendem trabalhar na actividade privada sabendo-se, com se sabe, que os nossos ignorantes empresários tem o mau hábito de seguirem as asneiras cometidas pelo Estado. Por isso, convido-vos a ler o teor da Petição e a assiná-la no caso de estarem de acordo.

quarta-feira, julho 28, 2010

SEMELHANÇAS

Quanto olhar
de riso triste
na vida! ...

O pranto
- sabias ?

segue o rumo
das águas geladas
dos rios do sul.

Georgina Albuquerque

(poetisa brasileira)

terça-feira, julho 27, 2010

Choro!

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
as crianças violadas
nos muros da noite
úmidos de carne lívida
onde as rosas se desgrenham
para os cabelos dos charcos.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
diante desta mulher que ri
com um sol de soluços na boca
- no exílio dos Rumos Decepados.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
este sequestro de ir buscar cadáveres
ao peso dos poços
- onde já nem sequer há lodo
para as estrelas descerem
arrependidas de céu.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
a coragem do último sorriso
para o rosto bem-amado
naquela Noite dos Muros a erguerem-se nos olhos
com as mãos ainda à procura do eterno
na carne de despir,
suada de ilusão.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
todas as humilhações das mulheres de joelhos nos tapetes da súplica
todos os vagabundos caídos ao luar onde o sol para atirar camélias
todas as prostitutas esbofeteadas pelos esqueleto de repente dos espelhos
todas as horas-da-morte nos casebres em que as aranhas tecem vestidos
para o sopro do
silêncio
todas as crianças com cães batidos no crispar das bocas sujas
de miséria...

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro...

Mas não por mim, ouviram?
Eu não preciso de lágrimas!
Eu não quero lágrimas!

Levanto-me e proíbo as estrelas de fingir que choram por mim!

Deixem-me para aqui, seco,
senhor de insónias e de cardos,
neste ódio enternecido
de chorar em segredo pelos outros
à espera daquele Dia
em que o meu coração
estoire de amor à Terra
com as lágrimas públicas de pedra incendiada
a correrem-me nas faces
- num arrepio de Primavera
e de Catástrofe!

José  Gomes Ferreira

Esta é a minha reacção ao pulular de encómios ao botas, quando passam 40 anos sobre o maior vendaval anti-poluente que varreu o país de norte a sul.

segunda-feira, julho 26, 2010

Justiça

Quando um homem quer matar um tigre, chama a isso desporto; quando é o tigre que quer matá-lo, chama a isso ferocidade. A distinção entre crime e justiça não é muito grande.

domingo, julho 25, 2010

Asas

Possui asas
Quem não vê distâncias
De sentir
Um mundo em cada gesto
E a magia de ser
Apenas um ser!

Porque há uma força
Em cada sonho criador
De cada mundo:
O que torna o homem mais pássaro
Com as suas penas
Com a sua garra
Com o seu canto
Na liberdade de ser
Apenas um ser.

Genildo Mota Nunes

Poeta sergipano

sábado, julho 24, 2010

Safra

Como um viticultor ocioso come
em pleno outono, uma por uma, as uvas
do cacho que ele viu nascer, pesar,
sob os olhos do sol e o próprio olhar;
e em que, mais demorando o paladar
na espera aberta entre o prazer e a fome,
já reconhece o gosto bom das chuvas
lavando os fornos do verão distante;
e, como uma saudade só, o sabor
da terra presa às mãos grossas de suor
- assim viver a vida, instante a instante.

Geir Campos*

*poeta carioca

sexta-feira, julho 23, 2010

A Palavra

A palavra é matéria
A palavra tem forma física
A palavra tem som
A palavra de Adélia Prado,
A palavra de Drummond,
A palavra do direito,
A que libertou navios negreiros ...
A palavra universal, que fez
poemas clássicos, prosas sociais,
romances realistas.
A palavra apalavrada, silenciada,
a que continua no coração do poeta.
Palavra ! Oh ! Palavra ! Concedei-me a permissão,
honrosa concessão, para utilizar-me de ti, sem restrições.
Sob tua forma quero falar um pouco da minha solidão.

Gabriela Cunha Melo Cavalcanti*

*poetisa brasileira

quarta-feira, julho 21, 2010

Ela não escolhe idade

Chamava-se Tiago Alves, tinha 18 anos e era judoca, ganhou em Abril a medalha de bronze na Taça da Europa de Esperanças, na Estónia, onde conseguiu os mínimos para os Europeus e Mundiais, quando já começava a sentir que algo corria mal.

Em 21 de Junho foi-lhe diagnosticado um cancro no estômago e resolveu criar o IPPONforLIFE, blogue onde dizia da sua vontade de lutar e da sua esperança de cura. Apesar de submetido a cirurgia, a morte levou-o ontem.

Descansa em paz, Tiago

terça-feira, julho 20, 2010

Merda quente e merda fria

Em finais dos anos sesenta, o grande poeta e romancista Charles Bukowski escreveu um artigo na coluna Escritos de um velho indecente de que era autor na revista contracultural Open City, no qual se refería aos dois principais candidatos às eleições presidenciais estado-unidenses de 1968: Richard Nixon, pelo Partido Republicano, e Hubert H. Humphrey, pelo Partido Demócrata. Entre muitas outras coisas, Bukowski dizia: “Que te dêem a oportunidade de escolher entre Nixon e Humphrey é como se te dessem a possibilidade de escolher entre comer merda quente ou comer merda fria”.

Se mudarmos o cenário estado-unidense de há quatro décadas para a actualidade portuguesa e substituirmos os nomes de Hurbert Humphrey e Richard Nixon pelos de José Sócrates e Pedro Passos Coelho ou, o que é quase o mesmo, pelos projectos políticos do PS e do PSD, teremos o mesmo menu que anunciava Bukowski para os Estados Unidos de 1968: prato único. Apenas varia a temperatura, servindo-se um quente e o outro frio, não se sabendo muito bem qual é o quente e qual é o frio.

segunda-feira, julho 19, 2010

E então, que quereis?...

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?

O mar da históriaé agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.

domingo, julho 18, 2010

Fiat

Vestir a pele inconsútil da cariátide
e vencer o inseto obscuro
na noite definitiva.

Sorver a verticalidade nua
e transpirar o sol da estátua antiga
que a virtude não concebe.

Retalhar-se em moléculas de gozo
e consumir-se na luz.

Gabriel Archanjo de Mendonça*

*poeta brasileiro

sábado, julho 17, 2010

Filhos em série

Desde o primeiro filho, seu Rozendo foi dando nomes a eles sempre começados pela letra N: Nílton, Neusa, Nivaldo, Nilse, Nélson, Nelma...

Um vizinho recém-chegado da zona rural soube dos nomes dos filhos dele e foi lá dizer que ambos tinham algo em comum:

- Meus fio tamém têm os nomes começados por uma letra só. Mas é pela letra A: Tonho, Cida, Belardo, Tamiro, Nésio.


Publicado no jornal digital VIAPOLÍTICA

sexta-feira, julho 16, 2010

CONSCIÊNCIA

Cada minuto uma questão
Mil fronteiras que venço ou que não venço
Mas nenhuma de mais dura e duradoura combustão:
ser o que penso

quinta-feira, julho 15, 2010

Rascunhos

Esta noite voltei a sonhar com meus lagartos
e as mesmas pedras onde costumam dormitar
em minha Catedral Submersa.

Aqueles mesmos sons de sino e carrilhões
desfilaram pela nave deserta
como procissões extintas
sopradas das cinzas da memória.

Acho que o sol era só deles,
lagartos quase jade,
figuras esculpidas no limo verde-escuro das rochas.

Seus olhos, no entanto, abriam-se para nosso espanto
e para o espanto deles próprios
(lagartos).

Fred Souza Castro*

*poeta brasileiro

quarta-feira, julho 14, 2010

Soneto ao Dicionário

Não faço versos com sentimentos :
São as palavras a matéria-prima.
Pouco importam métrica e rima,
Fundamental é suscitar fonopsia.

A fonética, arcano da fonologia,
Multifaceta as regras da prosódia.
Veja como é fácil fazer poesia
Quando se tem um bom dicionário :

Em lugar de perplexo, escrevo vário.
O leitor entenda como quiser.
Quiçá, fecundo, faça fé.

Pedante, paragógico, paramnésico,
O elóquio elíptico emascara o elo.
Eloqüente um barroco tenho ao pé.

Fred Matos*

*poeta brasileiro

terça-feira, julho 13, 2010

Tipo assim

Tipo assim, as pessoas fazem tipo, entendeu? Não é artificial não, vem de dentro, ou vem de fora, vem da sociedade, dos astros, mas também tem essa coisa inconsciente, entendeu? Ou vem da genética, sei lá.  

Há vários tipos, tipezas, tipões, tipinhos e tipaços.  

Deixa eu te falar - tem gente que faz tipo intelectual e lê o texto meio que com nojo, catando piolho, catando regência verbal incorreta, frase errada, vírgula indevida.  

Tem gente, ao contrário, que faz mais o meu tipo que eu estou fazendo agora, tipo oralidade sem muito compromisso, tipo deixa rolar, é claro que eu prefiro ser tipo assim.  

Agora, tem gente que faz mais tipo conservador atualizado, tipo gente séria que está sempre flagrando falta de ética dos outros, e está sempre denunciando as perversões alheias, e está todo dia de olho na TV e na internet para ver o que a TV e a internet estão mostrando de pervertido. Tipo assim.  

E tem o tipo vale-tudo, o cara ou a cara que não tem repressão, e come de tudo e de todos, ou pelo menos faz tipo assim um discurso do tipo "eu faço tudo e daí?", tipo "eu já vi de tudo" e não topa o tipo outro que fica no pé dele com o topete de quem tudo sabe, de tudo entende, entendeu?  

Tem também o tipo duplo, tipo faz e cala, pensa mas não diz nada, tipo assim, tipo sonso, tipo taca tudo debaixo do tapete, tipo tapa a boca mas depois é fake no orkut, tipo não tem porém tem, tudo bem.  

Por outra parte, o tipo abertura total, alma escancarada, diz o que pensa e o que não pensa, tipo franco, tipo dá a cara para bater, e grita no ponto, e parte para o tapa.  

Tem o tipo que quer chegar ao topo, custe o que custar, mate quem matar, se mata, se mete em tudo, pisa, posa, paga, vende, topa tudo por quase nada...  

Tem o tipo que apronta e pinta o sete.  

Tem o tipo que curte a sorte, aposta em todos os dados.

Tem o tipo que quer viver no mato, comendo tomate e abacate.  

Tem o tipo poeta, alheio ao burocrata, que é tipo assim poeta do carimbo.  

Cada tipo no seu trilho, entendeu?  

Tipos de todos os topes - tu e eu.


*professor e escritor

Publicado no jornal digital Correio da Cidadania

segunda-feira, julho 12, 2010

Talvez

Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,

E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...

sábado, julho 10, 2010

Poeta

Deixa cair todo este orvalho puro
sobre os teus ombros doloridos.

Vê como é suave a terra:
mesmo nos galhos mais bruscos,
olha: há carícias amigas.

Tudo é mais coração, porque és mais coração.

Orvalho... Orvalho... Parece
que em tua vida alguma cousa amadurece.

Deixa cair, deixa rolar teu poema
como um fruto maduro, pelo chão.

Loucura

Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós certas pequenas loucuras.

Marcel Proust

sexta-feira, julho 09, 2010

Epitáfio

Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu luz ao dia
E apascentou a tarde

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que

Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.

quinta-feira, julho 08, 2010

Capacidade de síntese

Num jornal abertamente anti-monarquia li esta saborosa anedota real: 


Disciplina: Língua e literatura espanhola

Exercício: Composição literária que contenha os seguintes temas:

-          Sexo
-          Monarquía
-          Religião
-          Mistério

Recomendação: Brevidade  concisão.

Resposta de um aluno:

Oh, meu Deus! Foderam a Rainha! Quem terá sido?

quarta-feira, julho 07, 2010

Elegia

A alegria da vida, essa alegria d'oiro
A pouco e pouco em mim vai-se extinguindo, vai...
Melros alegres de bico loiro,
Ó melros negros, cantai, cantai!

Ando lívido, arrasto o pobre corpo exangue,
Que era feito da luz das claras madrugadas...
Rosas vermelhas da cor do sangue,
Rosas abri-vos às gargalhadas!

Limpidez virginal, graça d'Anacreonte,
Mimo, frescura, força, onde é que estais?... não sei!...
Ó águas vivas, águas do monte,
Ó águas puras, correi, correi!

Eu sinto-me prostrado em lânguido desmaio,
E a minha fronte verga exausta para o chão...
Cedros altivos, sem medo ao raio,
Cedros erguei-vos pela amplidão!

Guerra Junqueiro, in Poesias Dispersas
Alma

Na alma da maioria dos homens grunhe ainda, baixo e voraz, o focinho do porco.



terça-feira, julho 06, 2010

Sina

A gente grita, corre, sufoca e morre.
A gente canta, encanta, explode e pára.
A gente avança, recua, esbarra na rua.
A gente ama, trai, reclama e cai.
A gente come, some, chora a fome.
A gente ganha, sonha, acorda, esvai.
A gente cala, fala, escala e crê.
A gente reza, preza, é preso. E a fé?
A gente é medo doente da própria gente.

Francisco Tribuzi*

*poeta brasileiro

segunda-feira, julho 05, 2010

A eira e a piscina


















No local onde se encontra esta piscina existiu uma eira onde eu brinquei, aos Domingos, até aos 10 anos, na quinta de que os meus pais foram rendeiros explorados durante quase três décadas, pagando anualmente dois carros de milho (cada carro correspondia a 40 rasas e cada rasa a 13 quilos), dois terços da azeitona e dois terços das uvas colhidas, tudo colocado na casa do dono, a mais de uma hora e meia de viagem com o carro de bois, sendo que todas as despesas do ciclo do milho, da apanha da azeitona e do tratamento da vinha, desde a poda até à vindima, eram da conta dos rendeiros.

Depois de sairmos de lá em 1960, o patrão, um “respeitável” chefe das finanças, violonista amador e chefe de quina da Legião Portuguesa, nunca mais encontrou ninguém disponível para uma semi-escravidão para poder alimentar oito filhos e a quinta esteve mais de 30 anos ao completo abandono, até que o seu filho mais novo – um ano mais velho do que eu – conseguiu subsídios da União Europeia para recuperar a casa e transformá-la numa unidade de Turismo de Habitação, que fica a menos de um quilómetro da casa da minha irmã onde estou a redigir esta posta à sombra da parreira.

Ficou um coisa simpática para recordar a infância, embora com o travo amargo da exploração a que a que toda a minha família foi submetida. Podem vir passar cá uns dias, que isto é um sossego.

domingo, julho 04, 2010

Autobiografia

Nasceu em Taubaté, aos 18 de abril de ... 1884 (na verdade 1882). Mamou até 87. Falou tarde, e ouviu pela primeira vez, aos 5 anos, um célebre ditado: "Cavalo pangaré/Mulher que ... em pé/Gente de Taubaté/ Dominus libera mé".

Concordou.

Depois, teve caxumba aos 9 anos. Sarampo aos 10. Tosse comprida aos 11. Primeiras espinhas aos 15.

Gostava de livros. Leu o Carlos Magno e os doze pares de França, o Robinson Crusoé, e todo o Júlio Verne.

Metido em colégio, foi um aluno nem bom nem mau - apagado. Tomou bomba em exame de português, dada pelo Freire. Insistiu. Formou-se em Direito, com um simplesmente no 4º ano - merecidíssimo. Foi promotor em Areias, mas não promoveu coisa nenhuma. Não tinha jeito para a chicana e abandonou o anel de rubi (que nunca usou no dedo, aliás).

Fez-se fazendeiro. Gramou café a 4,200 a arroba e feijão a 4.000 o alqueire.

Convenceu-se a tempo que isso de ser produtor é sinônimo de ser imbecil e mudou de classe. Passou ao paraíso dos intermediários. Fez-se negociante, matriculadíssimo. Começou editando a si próprio e acabou editando aos outros.

Escreveu umas tantas lorotas que se vendem - Urupês, gênero de grande saída, Cidades mortas, Idéias de Jeca Tatu, subprodutos, Problema vital, Negrinha, Narizinho. Pretente publicar ainda um romance sensacional que começa por um tiro:

- Pum! E o infame cai redondamente morto...

Nesse romance introduzirá uma novidade de grande alcance, qual seja, a de suprimir todos os pedaços que o leitor pula.

Particularidades: não faz nem entende de versos, nem tentou o raid a Buenos Aires.

Físico: lindo!


A Novela Semanal, São Paulo, nº 1, 2 de maio 1921

Autobiografia do “pai” do Sítio do Picapau Amarelo retirada daqui

sábado, julho 03, 2010

Labirinto

Agora o corpo fala de pássaros
anunciando a erosão rente à língua
o presságio que rasga o linho
o derrame da semente ao morrer.

Assusta-me o vidro dos olhos
esmagando-se no vértice da linha
a dormência ávida das águas
na rotação da última palavra.

Esta é a nudez intacta da luz
o ar na vibração do corpo
o cheiro agreste e puro da cânfora
o peso dos dedos sob o espanto.

sexta-feira, julho 02, 2010

Um dia branco

Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.

Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.

quinta-feira, julho 01, 2010

Lágrima

A cada hora
o frio
que o sangue leva ao coração
nos gela como o rio
do tempo aos derradeiros glaciares
quando a espuma dos mares
se transformar em pedra.

Ah no deserto
do próprio céu gelado
pudesses tu suster ao menos na descida
uma estrela qualquer
e ao seu calor fundir a neve que bastasse
à lágrima pedida
pela nossa morte.